A saúde mental no âmbito corporativo talvez nunca tenha sido tão mencionada como agora, diante de uma pandemia. As empresas estão cada vez mais atentas ao assunto e propõem ações para quem funcionários possam ter o que chamamos de um ambiente de trabalho psicologicamente seguro. No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer. Hoje conversamos sobre o assunto com Ana Carolina Peuker, CEO da Bee Touch, mental healthtech que mensura riscos psicossociais em instituições e empresas. Confira abaixo:
Como a pandemia influenciou as empresas para que buscassem formas de ajudar seus colaboradores a passarem por esse momento?
Ana: Vimos atletas olímpicos, celebridades e outras figuras públicas se manifestarem sobre os seus problemas de saúde mental e ajudarem a reduzir o estigma. Ao entrarmos no terceiro ano da pandemia, já estamos observando que a saúde mental continuará a ser uma das principais prioridades. Além disso, passou a vigorar a nova classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS), a CID 11. A síndrome de Burnout exigirá que as empresas atentem a este risco, pois a partir de agora, é considerada uma doença laboral. O que se espera é uma maior conscientização das empresas e também dos colaboradores. É importante ampliar a consciência, favorecer a prevenção e a detecção precoce. Muitas empresas ainda agem de forma reativa, atuando apenas quando o trabalhador precisa se afastar ou está em uma situação grave. É importante que passem a atuar de forma preventiva, usando dados, ciência e tecnologia de ponta para ter ações custo-efetivas e evitar perdas humanas e financeiras. Definitivamente, sem saúde mental não há saúde.
Quais as principais ações que empresas podem promover nesse cenário?
Ana: Em primeiro lugar, precisam compreender que a saúde mental não pode ser tratada como algo esotérico, abordada de forma intuitiva e sem método científico, especialmente, com as exigências relacionadas às diretrizes de ESG, além de todas as questões ordinárias, como o imperativo legal das normas regulamentadoras (NRs) do Ministério do Trabalho que exigem avaliação psicossocial e PGR (plano de gestão de riscos), por exemplo. Além disso, devem entender que soluções “tamanho único” ou simplistas não surtem efeito. Muitas empresas fazem ações isoladas, às vezes restritas ao mês alusivo à causa, sem método e compreensão técnica apropriados. Por isso, por mais convenientes que pareçam, os informativos produzidos a partir de informações genéricas sobre saúde mental, as palestras ou os benefícios corporativos estão longe de serem suficientes, se não forem sustentadas por uma metodologia robusta. A saúde mental no ambiente de trabalho depende de análises e ações muito mais profundas, como por exemplo: realizar uma avaliação da carga de trabalho, identificar sobrecargas, promover a redistribuição das tarefas, rever as responsabilidades, considerando metas realistas e restrições circunstanciais. Quanto ao equilíbrio vida pessoal e trabalho, é importante combinar a flexibilidade com regras em que o colaborador não fique sempre disponível, deixando um tempo livre para descanso e para a vida pessoal.
O tema saúde mental ainda enfrenta algum tipo de bloqueio? Como as empresas estão lidando com o assunto?
Ana: Apesar de alguns avanços, como a maior abertura para a discussão do tema, ainda há muito tabu e estigma. A saúde mental e física ainda são percebidas como coisas separadas. As doenças mentais não são vistas como problemas reais. Trata-se de uma área historicamente negligenciada. Com isso, todos têm prejuízos: trabalhadores, empresas e sociedade. Só em 2020, foram quase 300 mil trabalhadores afastados. E, além disso, houve uma alta de quase 30% na concessão de aposentadorias por invalidez e auxílios-doença, por problemas como depressão, um índice histórico. Entre 2011 e 2030, a perda cumulativa de produção econômica associada a transtornos mentais é projetada em US $16,3 trilhões em todo o mundo. Estima-se que as consequências secundárias da doença mental custam aos empregadores US$ 2 mil por empregado anualmente, por presenteísmo, absenteísmo e turnover. Os custos diretos e indiretos podem chegar a 5% do produto interno bruto (PIB) de um país. O que eu percebo é que as empresas que estão em um nível de maturidade maior neste sentido, atuando em mercados fora do país, já nos procuram não só para se adequar à normas como a recém publicada ISO 45003 totalmente orientada para a gestão dos riscos psicossociais, mas também porque desejam criar ambientes favoráveis à alta performance e se “imunizarem” para os problemas psicológicos preveníveis. Afinal, não adianta disponibilizar álcool gel, ter protocolos de biossegurança, se os riscos psicossociais não forem geridos adequadamente. Já as empresas inativas e/ou imaturas “tapam o sol com a peneira” não agindo, tratando a saúde mental com ações paliativas ou apenas da perspectiva de benefício, “apagando incêndios”.
Como o ambiente de trabalho influencia na saúde mental dos colaboradores?
Ana: Com o passar dos anos, a área da saúde e segurança ocupacional evoluiu muito. Hoje, não há porque explicar a necessidade de um ambiente seguro do ponto de vista ergonômico. Há muitos métodos para gerir os riscos tradicionais, que são visíveis, físicos, químicos, biológicos. Ou seja, embora a saúde possa ser afetada por variáveis individuais, o ambiente laboral pode contribuir para que haja agravamento de determinadas condições ou favorecer riscos. Se o trabalhador não usar o cinto de segurança apropriado para o seu peso e a sua altura, haverá risco de acidente com queda em altura, com maior chance de morte. Os riscos de saúde mental, embora invisíveis, devem ser abordados da mesma forma, sistemática e objetiva. Se o ambiente não for psicologicamente seguro e houver, por exemplo, carga horária em excesso, falta de autonomia, abuso moral, entre outros riscos, isso propiciará o aumento do estresse e da vulnerabilidade aos problemas mentais. Ou ainda, se um quadro de risco de suicídio não for identificado e manejado rapidamente através de um procedimento emergencial, o trabalhador poderá morrer. Por outro lado, se o ambiente organizacional dispõe de práticas, políticas e uma cultura psicossocial positiva, garante-se maior bem estar aos colaboradores e padrões de desempenho muito mais satisfatórios e, acima de tudo, sustentáveis.
Quanto pesa para que uma pessoa desenvolva algum transtorno por conta de um ambiente de trabalho tóxico?
Ana: Os transtornos mentais podem ser multideterminados, incluindo: variáveis biológicas, genéticas, ambientais, sociais e culturais. Essa compreensão é importante porque não há uma via de mão única no desenvolvimento de um transtorno mental. Mas, um ambiente de trabalho tóxico, sem dúvidas, pode constituir gatilho para o adoecimento mental. É por isso que as organizações devem implementar planos de ação e controle para qualificar o ambiente psicossocial, predizendo, mitigando e gerindo riscos.
Como a Bee Touch atua? Quais são os métodos usados e como ajudam as empresas?
Ana: A Bee Touch usa tecnologia e ciência de dados para identificar e rastrear riscos psicológicos nos ambientes corporativos. A partir desta análise, oferecemos soluções em saúde mental, baseadas em dados e medidas confiáveis. Nosso capital intelectual é grande, pois acumulamos anos de experiência acadêmica e técnica, antes de empreendermos. Não somos aventureiros na área de saúde mental, somos cientistas. Desenvolvemos a primeira plataforma digital de avaliação psicológica do país, a Avax Psi. Hoje, temos ferramentas como o “Burnômetro” que mede os níveis de exaustão pelo trabalho. Além disso, desenvolvemos o índice de risco psicossocial que auxilia as empresas a predizer riscos de saúde mental e a implementarem planos de ação com base nas causas raiz dos riscos psicossociais e nas necessidades reais dos colaboradores. Também oferecemos atendimento psicológico e avaliação psicológica de forma remota, através de nossa plataforma. O trabalho é todo mediado por dados que são obtidos, de forma segura e confiável, através de protocolos de avaliação e algoritmos de análise contidos em nossa plataforma, a Avax Psi. Desta forma, os gestores deixam de agir intuitivamente e passam a atuar a partir dos insights propiciados pelos dados, apoiados por todo nosso know-how técnico científico.
Quais os planos da empresa para 2022?
Ana: Além de triplicarmos o tamanho de nossa equipe, estamos investindo também em nossos produtos e na experiência de nossos usuários, aprimorando protocolos, algoritmos e técnicas de IA. Recebemos no último semestre, clientes como o grupo Randon. Temos notado que são essas empresas que desejam se manter no topo, que investem em soluções de saúde mental robustas. Vimos também que as empresas certificadas na ISO 45001 são as principais empresas que demandam nossas soluções, em virtude das exigências da norma e de requisitos legais. No ano passado, iniciamos nossa atuação no mercado europeu. Por lá, o rastreio dos riscos psicossociais é uma forte demanda, inclusive do setor de serviços, visto que na indústria já é algo bem consolidado e exigido por lei. No Brasil, estamos ganhando maior tração e atraindo mais clientes, inclusive de outros segmentos, como por exemplo, o setor financeiro, altamente vulnerável ao estresse. Queremos atingir a marca de mais de 1,5 milhão de vidas cobertas e triplicar nosso faturamento. Na indústria, temos uma história pioneira e bem sucedida, como um projeto de gestão de saúde por meio de software realizado junto à Braskem e ao Hospital Moinhos de Vento. Em quase seis anos de atuação, reduzimos de 30% para 3% o nível de alto risco para doenças crônicas não transmissíveis entre os trabalhadores de uma planta no RS, através de nosso método. Nosso “sonho grande” é se tornar a principal referência em inovação em saúde mental do país: sendo um hub de soluções tecnológicas para gestão 360 graus, desde a predição do risco psicossocial até o tratamento e intervenções preventivas e terapêuticas, baseadas em evidências e dados, além de qualificar e digitalizar os processos de avaliação psicológica, por meio da plataforma Avax Psi.