Por Alcione Pereira, fundadora e CEO da Connecting Food.
Toda vez que a FAO lança uma atualização do relatório que traz o Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), quem está de alguma forma envolvido no assunto renova as esperanças de que os números tenham começado a mudar positivamente.
Antes de mais nada, vale a pena relembrar que a insegurança alimentar se acentuou muito com a pandemia do Coronavírus.
Segundo os dados da própria FAO, a fome passou a ser a realidade de quase 800 milhões de pessoas no mundo todo, em 2021.
Na atualização de julho deste ano, esse número se manteve nos mesmos patamares, porém, a média global aumentou em mais de 120 milhões, quando comparada ao período pré-pandêmico (2019).
Também sabemos que a mais recente guerra entre Rússia e Ucrânia ajudou a agravar esse cenário, devido aos desdobramentos das restrições aos fertilizantes e grãos, em todos os continentes.
Outro fator que colabora para que a realidade da fome infelizmente se expanda para mais pessoas a cada ano são as mudanças climáticas, que têm relação direta com a produção agrícola.
É por tudo isso que os dados mais recentes da FAO se resumem, basicamente, a:
- Cerca de 30% da população global enfrentando insegurança alimentar moderada ou severa (quase 2,5 bilhões de pessoas);
- A questão da qualidade do que se ingere continua sendo um grande desafio, já que não basta garantir o acesso a qualquer tipo de alimento, mas sim aos que proporcionem o aporte nutricional necessário;
- A crescente urbanização, que inevitavelmente ocorre em todos os cantos, deixa as populações rurais ainda mais vulneráveis à fome (33%) do que as urbanas (26%);
- Também a porcentagem de pessoas afetadas pela fome de acordo com o gênero é desproporcional: são quase 28% de mulheres contra cerca de 25% de homens.
Apesar dos sinais de recuperação da economia, os recentes aumentos nos preços dos combustíveis e dos alimentos fazem com que o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de erradicação da fome no mundo até 2030 pareça cada vez mais inatingível.
Afinal, as projeções indicam que até lá, mais de 600 milhões de pessoas ainda serão alvo da insegurança alimentar grave.
Essa visão aparentemente negativa do cenário tem outro fundamento: as diferenças regionais. É o que acontece, em especial, com a população africana, em que a prevalência da fome é muito maior (cerca de 20%) do que em qualquer outra parte do planeta (entre 6,5% e 8,5%).
Trazendo o olhar para o nosso quintal, já sabemos que o panorama não é diferente e, na verdade, vem se agravando: ainda segundo os números do último relatório da FAO, mais de 60 milhões de brasileiros enfrentam algum tipo de insegurança alimentar e quase um quarto dessas pessoas passam fome.
Os números absolutos são altíssimos e inaceitáveis.
Mas o que mais impressiona é o aumento desses indicadores, quando comparados com o estudo anterior: no início de 2022, quase o dobro de pessoas tinham dificuldade para fazer as 3 refeições diárias, comparando com os números de 2016, e quase 4 vezes mais brasileiros passaram a não ter praticamente nada para comer.
As saídas sugeridas pelo estudo da FAO não trazem novidades, mas nem por isso deixam de ser extremamente relevantes.
Elas confirmam que a insegurança alimentar é um dos problemas sistêmicos multissetoriais que mais assolam o mundo e, dessa forma, é fundamental que os distintos atores envolvidos sejam efetivamente engajados na construção das soluções.
A base fundamental para isso está nas políticas públicas, para que os demais setores da sociedade possam atuar dentro da lei e da maneira mais proveitosa para todos.
Aqui, podemos falar em advocacy, governança, coalizões, estratégia ESG, combate ao desperdício, uso de tecnologia e inovação, entre tantos outros conceitos e ferramentas já largamente conhecidos.
Compreender a realidade de quem passa fome todos os dias é o fator que conecta, efetivamente, tais soluções à prática.