Por Fernando Steler, CEO da Delend.
O mercado de capitais brasileiro está no limiar de uma revolução tecnológica. A tokenização, ao transformar ativos físicos em digitais, promete destravar trilhões em crédito e ampliar o acesso das pequenas e médias empresas (PMEs) ao mercado financeiro. Trata-se de uma das tecnologias mais promissoras para o mercado de capitais, trazendo benefícios como maior transparência, eficiência, facilidade e acesso democratizado a investimentos.
Em 2012, fundei minha primeira empresa, a D1, que hoje faz parte da Zenvia, depois de ter feito o IPO na NASDAQ em 2021. Um dos nossos objetivos iniciais era digitalizar apólices de seguros, documentos e comunicações para algumas das maiores seguradoras, bancos e varejos do Brasil. Naquela época, a digitalização de documentos era novidade, mas, em 2016, começamos a explorar algo ainda mais inovador: a tokenização. A tecnologia blockchain era pouco conhecida, mas logo vimos o potencial dela para autenticar documentos, como apólices de seguros, de maneira segura, eficiente e transparente.
A SUSEP, órgão regulador do mercado de seguros, à época, exigia que as apólices fossem assinadas digitalmente através do ICP-Brasil, uma infraestrutura de chave pública que, embora confiável, tinha limitações. Nossa equipe, curiosa e visionária, começou a pensar em alternativas. Foi quando começamos a estudar o blockchain e percebemos que a tecnologia poderia simplificar e baratear o processo.
Levamos a proposta ao regulador que se manteve neutro, inicialmente. Porém, com o tempo, nossa insistência ajudou a gerar uma consulta pública. Com o apoio de especialistas do escritório Pinheiro Neto Advogados, contribuímos com a SUSEP para atualizar a Resolução 294, permitindo que apólices pudessem ser assinadas digitalmente com qualquer tecnologia, desde que garantisse autenticidade, integridade, não repúdio e tempestividade. Na prática, isso era a descrição perfeita do que a blockchain oferecia.
Esse foi o ponto de virada. A partir daí, assinamos milhões de documentos com blockchain, e a tokenização passou a fazer parte integral do nosso trabalho.
Os benefícios da tokenização: transparência e eficiência
A tokenização, em essência, transforma ativos do mundo real em ativos digitais que podem ser facilmente negociados, registrados e auditados em uma blockchain, que nada mais é do que uma base de dados pública, distribuída e transparente – pense nessa tecnologia como um cartório digital, onde tudo é registrado com confiança. Um dos maiores benefícios é a transparência. Quando o ativo é tokenizado, todas as etapas de sua jornada – desde a emissão até sua negociação no mercado – podem ser registradas de forma imutável. Isso traz confiança para os investidores, que podem rastrear e verificar todas as transações associadas ao ativo.
Além da transparência, outro ponto-chave é a eficiência. A tokenização permite que ativos sejam negociados de forma mais rápida, sem a necessidade de intermediários que normalmente atrasam o processo e aumentam os custos. No mercado financeiro, isso pode representar verdadeira revolução, pois simplifica operações que antes eram burocráticas e demoradas.
Já vimos de perto como a tokenização pode transformar setores: na D1, aplicamos a tecnologia no mercado de seguros e conseguimos digitalizar e automatizar processos que antes exigiam longas revisões e assinaturas físicas. Isso, por sua vez, reduziu significativamente os custos e acelerou o tempo de processamento.
Recebíveis no Brasil: um mercado de R$ 30 trilhões
No Brasil, o mercado de recebíveis é enorme, representando muito mais do que um segundo PIB (Produto Interno Bruto). O volume total de transações na economia pode superar, e muito, o PIB brasileiro, em função da natureza das cadeias produtivas e financeiras, que envolvem múltiplas transações intermediárias para que um único produto ou serviço seja consumido. Explicando: o PIB mede apenas o valor adicionado final de bens e serviços produzidos em um país durante o ano, excluindo transações intermediárias;para o Brasil, o valor é de cerca de R$ 13 trilhões. Já o volume total de transações inclui todas as interações intermediárias na cadeia produtiva. Ou seja, para que o produto final (uma máquina de lavar roupa ou um carro) seja produzido, várias transações ocorrem entre fornecedores de insumos e componentes. Isso cria um efeito multiplicador no volume total.
De acordo com levantamento recente da CERC, uma Infraestrutura de Mercado Financeiro (IMF) que atua como registradora de recebíveis autorizada pelo Banco Central do Brasil, o valor total dos recebíveis gerados em um ano está na ordem de R$ 30 trilhões. Nesta conta estão praticamente todos os tipos de recebíveis do mercado, separados por Mercados Estabelecidos, Mercados em Desenvolvimento e Mercados em Fase Inicial, a saber:
Mercados Estabelecidos
- Recebíveis de cartões de crédito: R$ 7,5 trilhões em volume negociado
- Títulos bancários e valores mobiliários lastreados em ativos – debêntures bancárias, FIDCs e afins: R$ 3,6 trilhões em estoque avaliado
- Concessão de crédito B2B: R$3 trilhões
Mercados em Desenvolvimento
- Faturas: R$ 11 trilhões em volume negociado;
- Mercado imobiliário & agricultura: R$ 3,5 trilhões
Mercado em Fase Inicial
- Empréstimo consignado – folha de pagamento público e privado: R$ 300 bilhões em concessão de crédito
- Utilities – composto por empresas que fornecem serviços de energia elétrica, água e gás: R$ 300 bilhões em volume negociado
- Títulos judiciais: R$ 180 bilhões em estoque avaliado
- Créditos de carbono: R$ 100 bilhões em estoque avaliado
O crédito e as PMEs
O mercado de crédito total no Brasil é avaliado em R$ 4 trilhões**, com potencial adicional de crescimento de pelo menos R$ 2,5 trilhões. As PMEs possuem o seguinte volume de crédito (dados de dezembro de 2020):
- Médias empresas: R$ 419 bilhões
- Pequenas empresas: R$ 136 bilhões
- Microempresas: R$ 171 bilhões
Esses valores estão significativamente abaixo dos créditos destinados a grandes empresas, na ordem de R$ 1,021 trilhão, e a indivíduos, que possuem valor de R$ 2,24 trilhões.
Hoje, apenas 29% da demanda de crédito das PMEs é atendida. Isso cria uma lacuna de crédito potencial (ou gap) estimada em R$ 2,5 trilhões. O valor é uma estimativa do total de crédito que não está sendo fornecido às PMEs, refletindo a soma do crédito necessário para atender a todas as demandas não cobertas atualmente. Em termos econômicos, é um volume significativo de oportunidades não realizadas para as PMEs, que impacta negativamente o crescimento delas e, consequentemente, da economia como um todo.
Todavia, os principais fatores identificados que dificultam a concessão de crédito às PMEs já são conhecidos pelo mercado: falta de confiabilidade dos dados, já que a maioria das PMEs não possuem informações financeiras robustas e confiáveis; instabilidade do fluxo de caixa e falta de garantias, onde as receitas muitas vezes são voláteis e os recebíveis desconhecidos, o que aumenta o risco percebido pelos bancos e financiadores; e ainda o alto custo de atendimento, que reduz o interesse das instituições financeiras em ofertar produtos financeiros.
O impacto da tokenização no mercado de duplicatas
Exemplo muito claro de como a tokenização pode mudar o mercado está no setor de duplicatas, que ainda enfrenta muitos desafios, especialmente para PMEs.
As duplicatas são títulos de crédito usados pelas empresas para formalizar recebíveis de vendas a prazo. No entanto, esse processo sempre foi marcado por incertezas, como: será que este título é confiável? Será que esta venda ocorreu realmente? Será que este título já foi utilizado para desconto financeiro? A tokenização pode ajudar a reduzir riscos, pois permite que todas as informações sobre a venda e o título sejam registradas de forma transparente e imutável em uma blockchain.
E mais, com o avanço do Open Finance (sistema financeiro aberto), temos acesso a uma quantidade enorme de informações financeiras das empresas, que podem ser usadas para avaliar de forma mais precisa a capacidade real de pagamento da empresa e o risco associado a uma duplicata. A Inteligência Artificial (IA) também entra nessa equação, permitindo previsões com mais acurácia e detalhamento sobre a probabilidade de pagamento de um título de forma praticamente instantânea. No lugar de olhar para o passado da empresa, é possível analisar dados em tempo real e prever seu comportamento futuro, mesmo depois da emissão da duplicata.
Vale lembrar que o mercado de crédito para as PMEs será definitivamente destravado quando toda a jornada de venda for de confiança do sistema financeiro e não somente o registro do título ou da duplicata em si.
Tokenização: oportunidades para novos modelos de negócio
Estamos apenas começando a explorar o potencial da tokenização, mas já é possível enxergar várias oportunidades de negócio. Entre casos que vejo com mais clareza estão as PMEs. Tradicionalmente, essas empresas têm dificuldade em acessar crédito porque seus balanços financeiros muitas vezes não são tão confiáveis ou completos como em grandes empresas auditadas. Com a tokenização e o Open Finance podemos mudar isso.
Hoje, ao acessar os dados bancários de uma empresa dos últimos 24 meses, por exemplo, podemos construir a análise financeira confiável a partir de dados históricos, além de manter a conexão de dados ativa para seguir analisando. Isso permite que investidores e bancos tenham uma visão muito mais clara sobre a saúde financeira da empresa, facilitando o acesso ao crédito. Ora, imagine a geração da DRE (Demonstrativo de Resultados do Exercício – um relatório contábil comumente utilizado pelos credores para entendimento da saúde financeira da empresa) de uma PME ocorrer por engenharia reversa, usando IA e dados do Open Finance? E, com a tokenização, essas análises podem ser disponibilizadas de forma segura e transparente, garantindo privacidade das empresas, mostrando determinados dados apenas com consentimento da empresa que busca o crédito.
Outra área promissora é o uso de smart contracts, que são contratos inteligentes e automáticos em blockchain, que cumprem regras predefinidas, sem intermediários. Com eles, é possível automatizar a atualização de termos e condições de um contrato com base no comportamento financeiro da empresa ao longo do tempo. Por exemplo, se o perfil de risco da empresa mudar durante a vigência do contrato inteligente será possível ajustar automaticamente as condições, como prazos de pagamento, de acordo com a nova realidade.
A próxima fronteira da tokenização
Olhando para o futuro, acredito que a tokenização vai continuar a evoluir, impulsionada pelo avanço da IA e do Open Finance. Estamos em verdadeira revolução na forma como os dados financeiros são gerenciados e analisados, e a tokenização é o próximo passo lógico dessa evolução.
A tokenização não é apenas tendência tecnológica; é o alicerce de uma nova era no mercado financeiro brasileiro. Com capacidade de destravar bilhões em crédito, especialmente para PMEs, a tokenização é a oportunidade de democratizar o acesso a recursos financeiros e impulsionar o crescimento econômico sustentável.
No final, o que estamos construindo é um novo modelo de mercado, mais transparente, eficiente e acessível para todos. E esse é apenas o começo.