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A ilusão da humanização do trabalho na era da IA

Foto: divulgação

Por Sylvestre Mergulhão, CEO da Impulso.

A IA vem sendo vendida como o bilhete dourado para um trabalho mais estratégico, mais criativo e mais humano. O problema é que essa ideia soa melhor nos slides do que na prática. Automatizar tarefas repetitivas não significa, automaticamente, liberar gente para pensar. E menos ainda, transformar o ambiente de trabalho em um espaço mais empático.

Enquanto o discurso mira na humanização, a realidade aponta para outro lado. Hoje, 65% das empresas já adotaram algum tipo de IA. O que tem sustentado essa onda é o velho argumento da eficiência: cortar tempo, reduzir custo, escalar processos. Tudo bem, desde que não se finja que isso resolve a equação humana no trabalho. O que está acontecendo, na prática, é o inverso. A IA, em vez de aproximar, tem afastado. E não é força de expressão.

Quando uma empresa usa algoritmos para contratar, medir desempenho ou definir metas sem considerar contexto, ela está empurrando a responsabilidade da liderança para uma planilha. É o mesmo problema de antes, agora com mais tecnologia e menos sensibilidade. Onde deveria haver escuta, entra filtro. Onde existia relação, entra automação. É desse jeito que a gente transforma uma ferramenta poderosa em um novo fator de desgaste.

O World Economic Forum já aponta o risco com clareza. A adoção de tecnologias como a IA pode estar, sim, associada a mais satisfação no trabalho. Mas isso vem acompanhado de um aumento no estresse. E não é difícil entender o motivo. A tecnologia empurra os profissionais para tarefas mais complexas, mas sem oferecer o suporte necessário. Resultado: mais cobrança, menos segurança, menos tempo para respirar.

Se a IA entra para otimizar sem pensar no impacto sobre as pessoas, ela só reforça o que já vinha quebrado. Ignorar a experiência de quem está no meio desse processo gera ambientes mais frios, mais isolados e, no fim, menos produtivos. Parece contraditório, mas não é. Números mostram que empresas que investem em upskilling com apoio de IA conseguem reduzir lacunas de habilidades em até 40% até o fim de 2025. E aquelas que usam IA em programas de desenvolvimento já registram aumento de 46% na produtividade.

O que está em jogo aqui não é só eficiência. É cultura. É confiança. É o tipo de ambiente que a empresa escolhe construir. A IA pode ajudar a mapear necessidades, facilitar processos, distribuir conhecimento. Mas ela não substitui o papel de uma liderança que escuta, que entende o timing da equipe, que sabe quando é hora de acelerar e quando é hora de tirar o pé. Nenhum algoritmo entrega isso.

Tem muita empresa investindo pesado em tecnologia e esquecendo de fazer perguntas simples. Quem vai usar essa ferramenta? O que essa decisão muda no dia a dia da equipe? Existe espaço para erro nesse processo? Sem responder isso, qualquer esforço vira tiro no escuro. A IA não conserta desalinhamento entre expectativa e realidade. Só evidencia o que já não funciona.

Liderar na era da IA é aprender a conviver com a velocidade, sem perder de vista o cuidado. Não tem atalho. E não dá para terceirizar o trabalho de criar uma cultura saudável para sistemas inteligentes. As ferramentas podem até escalar conhecimento, mas não constroem confiança. Isso continua sendo responsabilidade de gente com clareza, intenção e presença.

Humanizar o trabalho nunca foi consequência da inovação. É uma escolha. E como toda escolha, exige responsabilidade. Principalmente de quem lidera. A pergunta não é se sua empresa vai usar IA. Isso é inevitável. A pergunta é: essa decisão vai servir às pessoas ou só à performance?

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