Por Marcel Nobre, professor, pesquisador e palestrante de inovação, tecnologia, inteligência artificial, tendências e educação, além de empreendedor, fundador e CEO da BetaLab.
O America’s AI Action Plan, plano detalhado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, para alcançar a soberania em IA, é, na prática, uma iniciativa unilateral do governo dos Estados Unidos para posicionar sua liderança em Inteligência Artificial (IA) na região. A estrutura do plano é robusta e aponta para pontos importantes que merecem atenção. Mas também carrega intenções estratégicas claras: proteger a hegemonia americana no desenvolvimento, uso e regulação da IA, influenciando direta ou indiretamente as decisões dos países vizinhos.
O plano se desdobra em seis prioridades: governança de IA e estrutura regulatória responsável; adoção de IA no setor público; IA para o bem público; desenvolvimento da força de trabalho; infraestrutura digital e compartilhamento de dados; colaboração internacional. No papel, são temas corretos e até necessários. Mas o tom do documento é menos “cooperação internacional” e mais “formação de aliança sob liderança americana”. Ou seja: há uma clara intenção de ditar padrões, ainda que com o discurso de ética e responsabilidade. Trump quer, na verdade, controlar o futuro!
O documento propõe que os países das Américas usem IA de maneira ética, com foco em inclusão, privacidade, transparência e segurança. Fala em capacitação de comunidades indígenas, que para mim soa como um storytelling enganoso, um ESG Washing, e também sobre interoperabilidade entre sistemas públicos e incentivo a dados abertos. No entanto, não fica claro quem vai financiar esses esforços, nem quais países realmente foram ou serão ouvidos. A palavra “co-construção” não aparece. A América Latina é mencionada, mas como possível usuária, não como desenvolvedora ou formuladora de políticas autônomas.
O que mais chama atenção, talvez, seja o que o plano não diz: as big techs americanas, que concentram o poder da IA no Ocidente, são apenas citadas como parceiras eventuais, e não como atores centrais, quando na prática, são elas que modelam as arquiteturas tecnológicas, algoritmos e modelos de linguagem usados no continente inteiro.
Não há menção direta à IA militar, apesar dos EUA estarem entre os países que mais investem nesse segmento, o que mostra um recorte conveniente do debate. A abordagem regulatória é superficial. O plano fala em “regulação responsável”, mas não propõe diretrizes concretas. Parece mais um posicionamento geopolítico com um bom storytelling do que um plano técnico de execução.
Não é exagero dizer que este plano é uma forma sofisticada de diplomacia tecnológica. Ele tenta posicionar os EUA como guardiões da ética em IA, ao mesmo tempo em que tenta ocupar espaços vazios na América Latina deixados por outras potências, como China ou União Europeia. É um jogo de influência. E o Brasil precisa saber disso.
Apesar das críticas, o plano escancara algo que deveríamos observar com atenção: os EUA já entenderam que a IA é um ativo geopolítico, econômico e cultural. E estão agindo para garantir protagonismo. No Brasil, ainda discutimos IA como se fosse só automação ou chatbot. Ainda pensamos em capacitação como cursos de prompt. Ainda tomamos decisões reativas, sem estratégia nacional clara, enquanto o jogo já é outro, muito mais sofisticado e que coloca em xeque quem controlará o futuro.
Por isso, é importante não apenas reagir a planos como esse, mas criar os nossos. Com identidade, base técnica e foco em soberania digital. Colaborar, sim. Mas com espírito crítico, propósito claro e interesse nacional na mesa. Se não teremos a curto prazo nossos próprios modelos de linguagem, que ao menos estruturemos um plano robusto e criativo, que utiliza nossas fortalezas para nos posicionarmos, senão, mais uma onda se passará, e o país do futuro continuará sendo o país atrasado e do passado!