Por Tatiana Pimenta, CEO da Vittude.
O Brasil tem uma reputação internacional que o coloca entre os países mais alegres do mundo. Do samba ao futebol, da música à simpatia popular, somos celebrados globalmente como um povo caloroso, resiliente, otimista. Mas por trás dessa narrativa solar, existe uma sombra densa e silenciada: a do sofrimento psíquico.
Somos o país mais ansioso do mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. O quinto mais depressivo. E o segundo em níveis de estresse. Em 2024, mais de 470 mil pessoas foram afastadas do trabalho por transtornos mentais e comportamentais, segundo dados do INSS. Os números do primeiro trimestre de 2025 já apontam para um crescimento expressivo, e tudo indica que ultrapassaremos a marca de meio milhão de afastamentos por saúde mental ainda este ano.
Não é um exagero dizer que estamos enfrentando uma epidemia invisível. Invisível porque o adoecimento psíquico, ao contrário de uma fratura ou uma infecção, nem sempre se apresenta com sinais claros. Invisível porque ainda é tabu — e em muitos contextos, segue sendo visto como frescura, fraqueza ou falta de fé.
Um sistema que adoece
Quando olhamos com atenção para os dados, o que se desenha é uma sociedade em desequilíbrio. E mais: um modelo de trabalho que esgota, adoece e afasta. Empresas exigem alta performance, metas agressivas, entrega constante. Mas raramente oferecem suporte emocional, escuta qualificada ou espaços seguros de diálogo.
De acordo com a última edição do estudo Saúde Mental em Foco, conduzido pela Vittude com mais de 2 mil trabalhadores de diferentes regiões do país, 62% dos respondentes relataram sintomas moderados a severos de ansiedade ou estresse. Quase metade se sente emocionalmente exausta com frequência. E 3 em cada 10 afirmam já ter pensado em pedir demissão por conta de sofrimento emocional no trabalho.
Saúde como direito e como responsabilidade
A Constituição Federal de 1988 é clara: “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. Isso inclui a saúde mental. Isso inclui o ambiente de trabalho. É por isso que, nos últimos anos, assistimos a um avanço importante no campo da regulamentação trabalhista voltada à proteção da saúde mental. Normas como a NR-17, que trata da ergonomia e agora inclui os riscos psicossociais, e a nova redação da NR-1, cuja entrada em vigor foi prorrogada para 26 de maio de 2026, são marcos importantes dessa evolução.
Mas aqui vale um alerta: a prorrogação da NR-1 não suspende as obrigações legais já existentes. A versão anterior da norma, vigente desde janeiro de 2022, já exige das empresas o gerenciamento dos riscos ocupacionais — incluindo os psicossociais. E a NR-17, em sua redação atual, já tem sido usada por auditores fiscais do trabalho para aplicar autos de infração em empresas que negligenciam o tema.
Empresas no centro da mudança
Há um componente inescapável nessa equação: as empresas. Elas ocupam hoje um papel central na construção de políticas de proteção e promoção da saúde mental. Não apenas porque são ambientes onde os sintomas se manifestam com frequência, mas porque também podem ser gatilhos ou barreiras para o cuidado.
O discurso do “colaborador feliz” já não basta. É preciso investir em estruturas sólidas de suporte psicológico, em formações para lideranças, em diagnósticos psicossociais baseados em dados reais. É preciso escutar as pessoas. Acolher sem julgamento. E agir com responsabilidade.
Não se trata apenas de evitar multas ou sanções legais. Trata-se de garantir sustentabilidade, produtividade e retenção de talentos em um cenário de crise silenciosa.
Quando o custo é humano (e financeiro)
O adoecimento mental impacta diretamente o Fator Acidentário de Prevenção (FAP), os custos com planos de saúde, a rotatividade de equipes e a produtividade. Empresas que negligenciam o tema tendem a apresentar presenteísmo crônico, alta rotatividade e perdas significativas de performance.
Não é à toa que muitas das organizações mais inovadoras e admiradas do mundo estão investindo pesado em programas estruturados de saúde mental corporativa. Não como um “benefício extra”, mas como um pilar estratégico de negócios.
O que precisamos fazer?
A resposta não é simples, mas é possível. Precisamos de:
- Atenção genuína aos dados: entender as causas do adoecimento;
- Educação em saúde mental para líderes e gestores;
- Sistemas acessíveis de escuta e acolhimento psicológico;
- Medidas de controle e planos de ação reais, e não documentos protocolados para auditorias;
- Engajamento da alta liderança. O tema precisa estar na mesa dos conselhos e do C-level;
- Coragem para sustentar conversas difíceis.
Uma prática já adotada por empresas comprometidas com a saúde mental — como Sanepar e Arcos Dourados — é a formação de colaboradores em primeiros socorros psicológicos. A recomendação é que ao menos 5% da força de trabalho receba esse tipo de capacitação, criando pontos de apoio emocional acessíveis dentro da própria organização.
Um exemplo disso é o Programa Vittude OÁSIS, que capacita líderes e colaboradores com base nas melhores práticas internacionais de Mental Health First Aid, adaptadas à realidade corporativa brasileira. A metodologia desenvolvida pela Vittude estrutura o acolhimento em cinco etapas essenciais: Observar, Abordar, Servir, Instruir e Suportar — criando uma verdadeira rede de escuta, apoio e encaminhamento que fortalece a cultura de prevenção e conversa diretamente com as exigências da nova NR-1.
O futuro exige responsabilidade
Se quisermos construir empresas saudáveis, sustentáveis e humanas, precisamos abandonar o modelo de gestão que empurra as dores para debaixo do tapete. Precisamos deixar de ser o país que “sorri pra fora” enquanto sangra por dentro.
Chegou a hora de virar o jogo. A NR-1, a NR-17, a lei 14.831/24 e todas as novas regulações são oportunidades. De amadurecimento, transformação e responsabilidade coletiva.
A boa notícia? Nós temos tempo. A má notícia? Não temos tanto assim. O futuro é de quem cuida. E a saúde mental não pode mais ser uma promessa, precisa ser um compromisso.