Por Cid Torquato, embaixador do ICOM e Secretário da Pessoa com Deficiência da Prefeitura de São Paulo.
A inclusão da comunidade surda é um tema que precisa estar na pauta o ano todo e não apenas em datas simbólicas. Eu acompanho e contribuo com esse cenário há 18 anos, desde que quebrei o pescoço e fiquei tetraparético.
Ao longo dessa trajetória, pude vivenciar de perto avanços importantes e, por isso, confesso que o meu sentimento hoje é de otimismo, especialmente diante das tecnologias inovadoras que estão surgindo e que têm o poder de transformar realidades.
Ainda assim, quando penso na comunidade surda, compreendo a frustração diante da lentidão das mudanças. O que mais impressiona é saber que, muitas vezes, bastariam ações simples e econômicas para gerar transformações profundas e duradouras, capazes de mudar, de verdade, a vida de quem mais precisa.
Apesar dos avanços jurídicos, como a Lei nº 10.436/2002 e o Decreto nº 5.626/2005 que, respectivamente, instituíram e regulamentaram a aplicação da Língua Brasileira de Sinais (Libras), ainda existe um abismo entre o que está na lei e o que acontece no dia a dia.
A verdade é que muitas pessoas surdas seguem excluídas, quase sempre segregadas, sem conseguir exercer de forma plena e autônoma seus direitos básicos em seu próprio idioma.
Um exemplo é que a legislação em vigor determina que todos os serviços e órgãos públicos ofereçam intérpretes de Libras e recursos de acessibilidade comunicacional, presencial ou virtualmente, com auxílio de tecnologia, a quem necessite.
Contudo, ainda é comum que surdos dependam de familiares e amigos para consultas médicas, atendimentos ao cidadão e audiências judiciais, o que fere um direito fundamental.
Se há um ponto em que a inclusão deveria ser inegociável, é na educação. O sistema educacional precisaria garantir currículo bilíngue Libras-português em todo o país, mas a realidade está longe disso.
Dados do Governo Federal indicam que existem apenas 64 escolas bilíngues entre os mais de 5,7 mil municípios. Isso significa que a maioria dos 63 mil alunos surdos, entre cerca de 48 milhões de estudantes no total, está matriculada na rede básica, onde faltam intérpretes e professores bilíngues.
Essa lacuna compromete não apenas a aprendizagem, mas também a formação de capital humano capaz de ingressar no mercado de trabalho.
No cenário corporativo, embora a Lei de Cotas (Lei nº 8.213/91) reserve vagas para pessoas com deficiência em empresas com mais de 100 funcionários, dados do IBGE mostram que apenas 29,2% delas participam do mercado de trabalho, contra 66,4% da população em geral.
Para profissionais surdos, a barreira não é a capacidade, mas a falta de ambientes comunicacionalmente acessíveis, com intérpretes ou tecnologias que facilitem a interlocução entre usuários de Libras e português.
Existem experiências promissoras pelo país. Em São Paulo, durante minha gestão como Secretário Municipal da Pessoa com Deficiência, criamos a Central de Acessibilidade Comunicacional (CAC) e a Central de Intermediação em Libras (CIL).
Essas iniciativas oferecem atendimento por videochamada, legenda e audiodescrição, transformando a vida da comunidade surda, especialmente no acesso a serviços de saúde e audiências judiciais. São exemplos de como pequenas ações podem gerar grandes impactos.
Nesse contexto, o ICOM, do qual sou Embaixador, também tem ampliado a comunicação com pessoas surdas em governos e grandes empresas, promovendo acessibilidade e inclusão.
Não é só em São Paulo que há bons exemplos de projetos relevantes. O que vemos são iniciativas que, muitas vezes com baixo investimento, promovem resultados concretos e mudam a experiência da comunidade surda.
Para o mercado, incluir a comunidade surda não é apenas uma questão ética. São mais de 10 milhões de brasileiros com algum grau de deficiência auditiva, sendo 2,7 milhões com surdez profunda.
Esse público demanda produtos, serviços e atendimento acessíveis e assistivos, um campo vasto para inovação, educação bilíngue e soluções digitais inclusivas.
Como ex-secretário e defensor da causa, acredito que é preciso fiscalização efetiva, formação de tradutores-intérpretes e professores bilíngues, além de incentivar empresas a verem a inclusão como vantagem estratégica.
Multiplicar as centrais de Libras, presenciais ou virtuais, também é essencial, especialmente em cidades menores e áreas rurais, ampliando a oferta de acessibilidade e garantindo mais autonomia e cidadania para a população surda.
A inclusão não deve ser lembrada apenas em campanhas pontuais. Ela precisa ser uma prática contínua, sustentada por políticas públicas eficazes e pelo compromisso real de governos, empresas e da sociedade.
Só assim o Brasil deixará de falar sobre inclusão como um ideal distante e passará a vivê-la como realidade cotidiana, com cada pessoa surda exercendo plenamente o direito inalienável de protagonizar… em Libras!