Por Fernando Manfio, criador da Cultura Decisiva.
O crédito para o consumo já foi símbolo de avanço no Brasil. Ao longo das últimas décadas, ele abriu caminho para que milhões de brasileiros tivessem acesso a bens antes inalcançáveis. Casas mobiliadas, eletrodomésticos, carros, viagens, tudo passou a parecer possível.
O que antes representava mobilidade social agora acende um alerta vermelho: o crédito continua crescendo, mas a inadimplência cresce ainda mais rápido.
A inadimplência das famílias ultrapassou 5,3% no início do ano, segundo o Banco Central, o maior índice desde 2017.
Enquanto isso, mais de 80% das famílias brasileiras estão endividadas. A equação é insustentável. Não se trata apenas de uma oscilação do mercado ou de um momento pontual. O que se vê é um desequilíbrio estrutural, alimentado por decisões apressadas e, muitas vezes, desconectadas da realidade financeira da população.
O crédito se tornou, em muitos casos, uma armadilha travestida de solução. Ele continua sendo oferecido com facilidade, sem que se avalie com profundidade se o consumidor está realmente em condição de assumir aquela dívida.
A lógica parece mais voltada a bater metas e alimentar o consumo imediato do que a construir relações saudáveis entre quem concede e quem é crediário. O resultado é um ciclo em que todos perdem: famílias endividadas, empresas fragilizadas, economia estagnada.
Falta inteligência na gestão desse mercado. E essa falta não se resolve apenas com tecnologia ou com promessas de inovação. Plataformas sofisticadas não corrigem decisões mal embasadas.
O crédito não pode ser tratado como uma linha de produção automatizada. Ele exige leitura de contexto, compreensão de comportamentos e sensibilidade para perceber que cada consumidor tem uma realidade diferente. Sem isso, o que se instala é a cultura do crédito irresponsável, aquele que parece resolver no curto prazo, mas destrói no médio.
E o problema não se limita às famílias. As instituições que operam direto ao consumidor, como varejistas, fintechs, financeiras e bancos médios, estão sentindo o peso do aumento da inadimplência. Muitas já operam no limite da capacidade de absorver prejuízos.
Quando essas empresas entram em colapso, o impacto é coletivo: empregos são perdidos, o crédito encolhe e o consumo desacelera. Uma crise silenciosa se arma nos bastidores, com potencial de atingir toda a cadeia produtiva.
É preciso recuperar o crédito como vetor de prosperidade, e não como gatilho de colapso. Isso passa por uma transformação urgente na forma como se decide a concessão. Não basta dar crédito. É preciso dar certo. E dar certo significa conceder com responsabilidade, avaliar com rigor e acompanhar com estratégia. Ele não pode ser tratado como um produto de prateleira. Ele é, acima de tudo, uma decisão que envolve confiança, análise e compromisso.
Se o país quiser, de fato, crescer de forma sustentável, precisa abandonar a euforia do crédito fácil e retomar a inteligência na forma de operar esse mercado. O que está em jogo não é apenas a saúde financeira das famílias, mas a estabilidade de todo um sistema.
O crédito, sozinho, não é vilão. Mas, mal administrado, ele se transforma no estopim de uma crise que ninguém poderá fingir que não viu chegar