Há algo profundamente errado na forma como estamos medindo sucesso no ambiente digital. Basta abrir uma reunião de performance em qualquer agência de publicidade ou equipe de marketing para perceber: há gráficos subindo, dashboards brilhando, campanhas batendo metas.
Mas do outro lado da tela, há pessoas esgotadas, distraídas, dependentes, dormindo mal, ansiosas, vivendo em ciclos curtos de dopamina, completamente colonizadas por estímulos que não pediram para receber. A pergunta que ninguém se faz é: qual o custo psicológico desses números?
A métrica mais celebrada pelas plataformas e anunciantes é o tempo de tela. Quanto mais tempo você passa em um aplicativo, mais anúncios são exibidos, mais dados são coletados, mais retorno é entregue.
Ao redor dessa métrica giram outras igualmente perversas: taxa de retenção, visualizações por sessão, número de sessões por dia, engajamento por impressão, profundidade de scroll, cliques por push notification.
Todas essas métricas têm algo em comum: não medem o valor do conteúdo, mas o quanto ele prende você. Não perguntam se aquilo fez bem, ensinou algo, causou reflexão. Perguntam se você ficou — e por quanto tempo.
É preciso dizer com todas as letras: as redes sociais não foram desenhadas para promover conexão ou informação de qualidade. Foram projetadas para capturar e manter sua atenção.
Cada segundo que você permanece rolando a tela, alguém lucra. E é por isso que as plataformas punem quem cria conteúdo calmo, profundo ou que convida à pausa — e recompensam quem grita, choca, exagera, simplifica.
No mercado, esse é o conteúdo que “performou bem”. Mas a performance digital tem se sustentado às custas de uma epidemia silenciosa de esgotamento mental.
Criadores de conteúdo aprendem desde cedo a usar gatilhos para capturar atenção nos primeiros três segundos. Estímulo visual, som marcante, legendas agitadas, rosto em close.
Do outro lado, o público, condicionado a consumir em velocidade, troca de vídeo a cada poucos segundos. Aquilo que antes era distração virou hábito. E aquilo que era hábito virou dependência.
Não conseguimos mais fazer nada sem uma segunda tela. Não toleramos silêncio. Estamos perdendo a capacidade de pensar com profundidade. E os relatórios de marketing chamam isso de “alta retenção”.
É aqui que a crítica precisa deixar de ser moralista e passar a ser estrutural. O vício em telas não é um problema individual. Não é uma questão de força de vontade.
Estamos falando de um modelo de negócios construído para explorar limitações humanas conhecidas: impulsividade, necessidade de recompensa, medo de ficar de fora.
Estamos falando de engenharia comportamental aplicada para manter as pessoas engajadas o maior tempo possível, a qualquer custo. E esse custo tem sido a saúde mental de milhões.
Enquanto marcas celebram campanhas que geraram “40 segundos de atenção a mais”, o que não se mede é quantos desses segundos foram arrancados de alguém já mentalmente exausto.
Não se mede o impacto emocional de mais uma notificação em alguém com ansiedade. Não se mede a perda cognitiva de uma criança exposta a vídeos de ritmo acelerado por horas.
O sistema celebra métricas que indicam eficiência de retenção, mas se recusa a enxergar que está operando com o mesmo mecanismo de um cassino: manter o jogador jogando, mesmo que ele esteja se perdendo.
A indústria da influência digital, por sua vez, normalizou o esgotamento como parte do pacote. Criadores trabalham em ritmo de agência de notícias. Produzem, editam, postam, analisam dados, ajustam estratégia, performam.
Muitos estão no limite. Mas o algoritmo não descansa. Quem para de postar, perde relevância. Quem desacelera, desaparece. O sistema não tolera pausas — e isso diz muito sobre a nossa incapacidade de lidar com o silêncio, com o não fazer, com o tempo sem métrica.
Mas talvez o aspecto mais perverso de tudo isso seja a forma como esses indicadores são usados para vender saúde, bem-estar, produtividade, consciência. O mercado do autocuidado também virou refém da lógica da performance.
Meditações de um minuto. Psicologia de carrossel. Pílulas de sabedoria entregues em formato de entretenimento de baixa retenção. Estamos falando de um modelo que esvazia a profundidade dos temas que mais exigem tempo e presença. E a ironia é brutal: estamos tentando nos curar usando os mesmos mecanismos que nos adoeceram.
Se queremos sair desse ciclo, precisamos parar de medir apenas o que é conveniente para as plataformas e marcas. Precisamos de novas métricas. Métricas que não celebrem apenas a permanência, mas a qualidade da experiência. Que considerem o bem-estar do usuário como critério de sucesso. Que valorizem o conteúdo que liberta, que ensina, que inspira a sair da tela, e não apenas aquele que nos prende por mais tempo.
Talvez devêssemos começar a perguntar quantas horas por dia conseguimos ficar sem abrir o celular. Ou quantas vezes saímos de uma sessão de uso digital com a sensação de que aquilo nos fez bem.
É claro que o mercado não vai fazer isso sozinho. O tempo de atenção ainda é a moeda mais valiosa da internet. Mas talvez a mudança comece com quem consome. Com quem cria. Com quem ousa medir impacto para além do número de visualizações.
Porque no fim do dia, todo clique tem um custo. Toda retenção tem um efeito colateral. E toda campanha que celebra engajamento sem considerar o efeito sobre o usuário, é cúmplice de um sistema que está nos deixando doentes.
Então, da próxima vez que você abrir o celular para fazer “só uma coisa”, e sair de lá quarenta minutos depois sem lembrar o que era, lembre-se disso: você não perdeu o foco. Ele foi roubado. E alguém recebeu um relatório mostrando que a campanha foi um sucesso.