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Antropologia do trabalho: por que o trabalho passou a definir quem somos?

Foto: divulgação

Na época dos grandes pensadores da Antiguidade, o valor estava no ócio criativo — tempo livre para pensar, criar e ser. Hoje, existe a falsa percepção que quanto mais horas passamos trabalhando, maior “valor” temos. Por que nossa vida profissional resumiu nossa vida toda?

Imagine Sócrates, Platão e Aristóteles sentados, filosofando sobre a vida e sobre o mundo. Para eles, a verdadeira riqueza era ter tempo livre para desenvolver ideias. Não eram os braços fortes que construíam templos ou colhiam alimentos que eram admirados, mas sim as mentes capazes de sonhar e pensar o novo. E adivinhe? Eles podiam fazer isso porque não trabalhavam! 

Sim, o “trabalho executor” ficava para os escravizados. A palavra “trabalho” vem de tripalium, um instrumento de tortura romano — e era exatamente assim que eles viam. Por isso, naquela época, o ócio era mais que um privilégio: era um símbolo de status

Na verdade, o ideal era ter o máximo de tempo livre possível para a filosofia, a política e a contemplação. Se você precisasse ser “produtivo”, não era realmente um cidadão de pleno direito.

No século XVI, com a Reforma Protestante, trabalhar virou um ato quase sagrado. A famosa máxima “o trabalho dignifica o homem” ganhou força. Plantou a ideia de que o sucesso na vida dependia da nossa dedicação ao trabalho — uma ideia que até hoje seguimos sem questionar.

O ponto de inflexão veio no século XVIII com a Revolução Industrial. As fábricas surgiram, e com elas um novo tipo de trabalhador e ritmo de trabalho.

Antes, a gente seguia o ritmo do sol e das estações, mas agora era o apito da fábrica que ditava a nossa rotina. Não era mais só “trabalhar para viver”. Era “viver para trabalhar”. Você era definido pela sua eficiência, pela sua produtividade e, claro, pelo cargo que ocupava.

Foi nessa época que o trabalho passou a ocupar cada vez mais espaço nas nossas vidas. Com as cidades crescendo e as fábricas se multiplicando, surgiram novos ideais e valores: a ideia do “trabalhador ideal”, aquele que se dedicava completamente se esquecia de tudo que não fosse o trabalho. E essa lógica só ganhou mais força ao longo do século XIX.

No século XX, Henry Ford levou essa obsessão a um novo patamar. Com suas linhas de montagem otimizadas, ele transformou trabalhadores em peças de uma grande máquina: 

Quanto mais rápido você era, melhor. Quanto mais tempo passava dentro da fábrica, mais você “valia”. A produtividade virou uma religião — e estar ocupado se tornou o novo status social.

E agora, no século XXI, estamos enfrentando uma nova virada. A globalização e a tecnologia trouxeram novas demandas e desafios. 

Esqueça a empregabilidade. Trabalhabilidade é sobre como você pode usar todo o seu potencial, suas habilidades e conhecimentos para gerar transformações reais — não só para a empresa onde você trabalha, mas para o mundo ao seu redor.

Não basta mais ser só um “bom empregado”. A gente quer ser protagonista da própria carreira, gerando impacto e, principalmente, encontrando propósito no que faz. E é isso que diferencia a trabalhabilidade da ideia de ter “um emprego para a vida toda”.

Agora, o importante é saber se adaptar, aprender sempre e buscar formas de se reinventar.

Enquanto a empregabilidade ainda se baseia em hierarquia, cargos e estabilidade, a trabalhabilidade olha para o potencial humano de uma forma mais ampla. Não queremos mais só “trabalhar bem” — queremos trabalhar com sentido

Empregabilidade é sinônimo de segurança, estabilidade, previsibilidade financeira, carga horária fixa, hierarquia de processos e pessoas. Enquanto isso, a trabalhabilidade é sinônimo de oportunidade, desenvolvimento, autonomia nos processos,crescimento exponencial e imprevisível, flexibilidade, adaptabilidade e inovação constante

E o que isso significa na prática? Que a trabalhabilidade não é apenas sobre adquirir habilidades técnicas. É sobre desenvolver uma mentalidade de aprendizado contínuo, curiosidade e resiliência. 

O World Economic Forum afirma que 81% das empresas consideram que investir em aprendizagem e desenvolvimento é uma estratégia fundamental para atingir os seus objetivos. Não se trata mais de crescer de forma linear, mas de se adaptar constantemente, com foco no desenvolvimento contínuo e na entrega de valor.

Será que esse conceito de trabalhabilidade se aplica a todas as pessoas de maneira igual? No Brasil, as mulheres dedicam, em média, quase 50% do seu tempo à limpeza da casa, mesmo quando têm jornadas de trabalho de 8,7 horas por dia.

O problema da jornada dupla ainda persiste. Enquanto falamos de autonomia e flexibilidade, muitas mulheres ainda estão presas a expectativas e rotinas que limitam seu crescimento.

Como construir um ambiente de trabalho que realmente libere todo o potencial das mulheres, sem exigir que elas sacrifiquem seu tempo pessoal e bem-estar? 

A resposta não está apenas em novos conceitos corporativos, mas em uma transformação estrutural de como encaramos o papel do trabalho na vida de todos — homens e mulheres, todas as pessoas.

Será que a gente consegue escapar dessa obsessão? 

A verdade é que precisamos aprender a ver o trabalho como parte do todo, e não como a totalidade da nossa existência. A trabalhabilidade deve nos ajudar a construir carreiras que nos permitam ser nosso melhor — não só quando estamos no expediente, mas em todos os momentos.

Um ponto importante para isso é resgatar o valor do ócio criativo. Sim, aquele mesmo defendido por Aristóteles lá atrás! Não podemos nos orgulhar apenas das horas trabalhadas, mas também das ideias geradas, das conexões construídas e das transformações que somos capazes de fazer acontecer.

Essa transformação não vai acontecer de um dia para o outro, mas uma coisa é certa: o trabalho que conhecemos está mudando. As novas gerações não querem mais ser definidas por cargos ou horários. Elas querem impactoautonomia e propósito.

Quando funcionários de qualquer nível dizem que seu propósito é alcançado por meio do trabalho, os resultados profissionais e de vida são de 2 a 5x maiores, segundo Mckinsey.

A trabalhabilidade nos desafia a ser mais do que profissionais eficientes. Ela nos convida a ser agentes de mudança, a repensar o papel do trabalho em nossas vidas e, quem sabe, até a construir um mundo onde o trabalho volte a ser um meio e não um fim em si mesmo.

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Co-fundadora do Todas Group

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