Por Felipe Attílio, head de marketing do E-Commerce Brasil.
Durante décadas, o marketing digital foi organizado em torno de um modelo quase dogmático: o funil. Descoberta, consideração, decisão, compra.
A promessa de previsibilidade se apoiava nessa linha reta que guiava o consumidor do primeiro clique até o checkout. Mas a realidade já não cabe nessa narrativa.
O live commerce, experiência que se consolidou na China e começa a ganhar força no Brasil, é talvez a demonstração mais clara de que o funil não explica mais o comportamento do consumidor.
Em uma live, tudo acontece ao mesmo tempo: awareness, engajamento, interação social, prova social e conversão. O consumidor descobre um produto, vê sua demonstração ao vivo, recebe incentivos de compra, compartilha impressões em tempo real e conclui a transação em minutos, sem sair da mesma tela. Não há linha reta, não há etapas distintas.
O que existe é um colapso da jornada, em que todos os estágios tradicionais convergem em um único fluxo dinâmico e simultâneo.
É como se o tradicional funil de vendas tivesse sido jogado no liquidificador, e o próprio liquidificador estivesse sendo vendido em uma live no TikTok.
A experiência chinesa mostra isso de forma radical. No Douyin (versão chinesa do TikTok), 84% dos usuários já compraram em lives. Ali, o consumo se mistura ao entretenimento. O feed recomenda produtos de acordo com algoritmos, as transmissões promovem interações entre influenciadores e público, e as compras ocorrem em segundos.
O consumidor não “passa” por etapas do funil. Ele entra em loops de atenção, desejo e urgência que podem terminar em uma compra imediata ou em uma sequência de interações que se prolongam no tempo.
Essa dinâmica desafia as métricas de marketing tradicionais. Se antes analisávamos impressões, cliques e conversões em sequência, agora precisamos medir tempo de retenção, engajamento do chat, taxa de recompra durante lives.
A métrica fundamental não é mais o CTR, mas o quanto uma experiência gera conexão emocional imediata e recorrente.
Isso não significa que o marketing perdeu sua função. Significa que precisa abandonar velhas certezas. O live commerce nos mostra que a jornada de compra não é linear nem previsível, mas emocional e instantânea.
O consumidor não quer mais esperar dias entre descobrir um produto e tomar a decisão de compra. Ele quer confiança em tempo real, gerada por demonstrações autênticas, interação direta e validação da comunidade.
No Brasil, ainda estamos apenas arranhando esse potencial. Marketplaces, marcas e influenciadores começaram a testar formatos de live commerce, mas a maioria ainda replica a lógica da televisão de vendas, sem entender que o diferencial não é o vídeo em si, mas a fusão entre mídia, comunidade e transação.
A lição chinesa é clara: o que move as vendas não é a transmissão, mas a arquitetura social e algorítmica por trás dela.
O maior erro seria tentar encaixar o live commerce dentro das mesmas categorias de marketing que usamos há 20 anos (com algumas variações metodológicas). Para os profissionais de marketing, isso significa reestruturar a forma de pensar campanhas.
Em vez de planejar jornadas longas, precisamos desenhar experiências completas que possam acontecer em minutos. Em vez de otimizar taxas de clique, precisamos medir intensidade de engajamento. Em vez de separar branding e performance, precisamos assumir que os dois colapsaram em um mesmo instante.
Se há um país preparado para essa transição, é o Brasil. Temos consumidores digitais altamente engajados, criadores de conteúdo vibrantes e um histórico de adoção acelerada de novas tecnologias (do WhatsApp ao PIX).
O live commerce pode se tornar, no Brasil, não apenas uma tendência importada, mas uma linguagem própria, que mistura nossa vocação para entretenimento com a força crescente do e-commerce.
O live commerce é mais do que uma inovação tática: é um sinal de que a própria lógica do marketing digital precisa ser repensada. O funil morreu não porque falhamos, mas porque o consumidor evoluiu. Ele não quer percorrer etapas. Ele quer viver experiências. Ele quer participar.