O Rio Grande do Sul tem pela frente o desafio de se reerguer dos destroços. Em meio à calamidade estrutural e ambiental, a Polícia Civil contabilizou que existem mais de 803 abrigos no estado, alguns deles com até 8 mil pessoas vivendo em um espaço limitado, com muitas privações. Apenas três deles são residência provisória exclusivamente de mulheres e crianças, que foram encaminhadas para as unidades ao procurarem por mais segurança durante a triagem.
Segundo a Secretaria de Segurança do Estado, ainda são 40 mil pessoas ocupando abrigos e cerca de oito foram presas por crimes de estupro, importunação sexual ou violência sexual. Algumas organizações sem fins lucrativos se mobilizaram para a criação de mais abrigos exclusivos para mulheres, bebês e crianças, por causa dos altos índices de relatos de abusos – muitos deles, que já aconteciam em ambientes domésticos e se tornaram públicos ao longo da tragédia.
Ainda de acordo com a Secretaria de Segurança, os casos de abusos e violências sexuais são isolados e a Brigada Militar e a Polícia Civil mantêm o reforço do policiamento nos abrigos da capital e da Grande Porto Alegre. No entanto, um estudo feito em 2010 sobre uma situação semelhante que afetou a população de Nova Orleans, nos Estados Unidos, após o Furacão Katrina (2005), mostrou que a violência física contra mulheres aumentou 98% na cidade.
A catástrofe climática não é, de forma direta, a causa do aumento dos abusos. A questão é bem mais complexa, do ponto de vista de gênero. No caso do Rio Grande do Sul, a situação de vulnerabilidade das mulheres e crianças facilita o acesso dos abusadores às vítimas, principalmente em locais como banheiros e em períodos noturnos, mesmo com a presença da polícia. Segundo o próprio governador do estado, alguns dos suspeitos de cometerem abusos são membros das famílias das vítimas, o que indica que essas crianças e adolescentes já sofriam abusos frequentes dentro de casa.
O poder público também está preocupado com a repercussão de notícias falsas sobre o assunto, que agravam a situação de pânico e a sensação de insegurança que a população já está enfrentando desde que perderam suas casas e pessoas próximas nos alagamentos e deslizamentos. Outras pessoas foram presas por crimes como roubos de bancos, saqueamento de comércios e casas, assaltos contra os voluntários e até furtos de equipamentos de resgate.
Por que as calamidades climáticas atingem mais as mulheres e crianças?
A situação no Rio Grande do Sul é um retrato do que acontece com diversos locais onde as mudanças climáticas e as crises causadas por calamidades naturais afetam as mais diversas populações. Geralmente, os locais mais afetados e menos preparados para lidar com catástrofes são ocupados por mulheres e crianças, já que as mulheres são menos remuneradas do que os homens e são, muitas vezes, as únicas responsáveis por seus filhos.
De acordo com o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, 72% das pessoas que vivem em condições de extrema pobreza e, portanto, estão mais expostas aos eventos de emergência climática, são mulheres. De acordo com relatório apresentado pela ONU Mulheres na COP28, até 2050 a mudança climática empurrará mais 158 milhões de mulheres e meninas para a pobreza e levará mais 236 milhões de mulheres à fome – não só pelos eventos climáticos em si (alagamentos, secas, furacões, tsunamis, chuvas torrenciais, desabamentos e deslizamentos), mas também pela escalada de conflitos e pela migração forçada.
Sarah Hendriks, diretora executiva adjunta da ONU Mulheres, declarou que espera “uma nova abordagem de justiça climática feminista”, ao apresentar o relatório Feminist Climate Justice: um modelo para ação. O Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que metade da população de crianças e adolescentes, um bilhão deles, vive em países com risco extremamente alto de sofrerem impactos da crise climática. A Organização Mundial da Saúde afirma que, hoje, de cada cinco mortes de crianças de até 5 anos, 4 delas estão relacionadas aos riscos ambientais.
A situação não melhora para as meninas quando se tornam adultas. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), as mulheres têm 14 vezes mais risco de morrer ou ficar feridas em um desastre climático do que os homens. Na COP26, realizada em 2021, o presidente do evento disse em seu discurso de abertura que as mulheres correspondem a 80% das pessoas deslocadas por desastres e mudanças climáticas em todo o mundo – na situação de refugiadas, estão mais propensas a sofrerem abusos sexuais e violências de gênero pelos homens dos países que lhes cederam abrigo.
Além disso, mulheres e crianças são a maior parte dos casos de exploração sexual, condições de trabalho análogas à escravidão e servidão, de acordo com o Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas de Trabalho Escravo. Segundo a divisão da ONU para Alimentação e Agricultura, as famílias chefiadas por mulheres perdem 8% mais do seu rendimento todos os anos devido às mudanças de temperatura, se comparadas às famílias chefiadas por homens. No Brasil, 50,8% dos lares são chefiados por mulheres. Tendo todos esses dados em vista, a conclusão é óbvia: as crises ambientais climáticas acentuam as desigualdades e as vulnerabilidades de gênero.
As explicações para isso são muitas e atravessam diversas questões: em casos de desastres ambientais que ocorrem em ambientes rurais, homens migram para as cidades e abandonam mulheres e filhos, que geralmente não detêm posse de terras ou reservas em dinheiro para sobreviver. Em Bangladesh, em 1991, 91% das pessoas mortas pela passagem de um ciclone eram mulheres e crianças – muitas delas morreram afogadas porque não eram ensinadas a nadar.
Além disso, a pouca representação política feminina entre os tomadores de decisões impacta diretamente a criação e os investimentos destinados às iniciativas voltadas especificamente para esses grupos mais vulneráveis. No próprio evento da COP28, cujo tema principal foram as mudanças climáticas, seus impactos e suas consequências, apenas 30% das lideranças mundiais presentes eram mulheres.
“A mudança climática não tem gênero neutro. As mulheres e as crianças vão sofrer os maiores impactos e estarão expostas a riscos que irão afetar sua sobrevivência, saúde e segurança”. Esse trecho faz parte de um relatório publicado em 2022 pela ONU Mulheres, mas parece ter sido escrito por quem está presenciando a tragédia que há semanas acontece no Rio Grande Sul. Até o momento, mais de 800 pessoas estão feridas e mais de 400 mil estão desalojadas. Pelos dados, publicados pelas mais respeitadas organizações mundiais, sabemos quem são a maior parte delas.